Estado Democrático de Direito e Infância
Ao refundar o Estado a Constituição de 1988 o conformou ao modelo do Estado Democrático de Direito, enraizado, por um lado, no efetivo respeito à ordem de valores representada pelos Direitos Fundamentais, e, por outro, no objetivo primordial de lhe dar pleno sentido por meio da promoção de uma sociedade livre, justa e solidária (CR, Art.3º, I).
Nesse particular, aliás, fazendo anotações a esse ponto da Carta, salienta-se na doutrina constitucional o claro propósito do constituinte em “formar uma sociedade dotada dos valores supremos dos direitos sociais e individuais, tais a liberdade, a segurança, o bem-estar, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça – que é aquela sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos e fundada na harmonia social.1
O texto constitucional abrigou em seus dispositivos iniciais (CR, Art. 3º), e com caráter normativo, diretrizes vinculantes para os poderes constituídos, como é do modelo de Estado concebido, desde então obrigados a uma atitude positiva no sentido de promover o necessário à transformação social, para introduzir condições favoráveis a uma convivência harmônica e isonômica entre os diversos segmentos da sociedade2 .
Em virtude disso, afinal, e para garantir a concretização desse propósito político, amparou por meio de direitos e diretrizes nela especificados diversas categorias sociais antes relegadas ou ao esquecimento ou a tutela insuficiente, entre elas, aliás, a atinente a crianças e adolescentes, contemplada, enfim, por meio de diretivas compatíveis com a normativa internacional, assentando que a condição peculiar de seus integrantes redundava necessariamente na urgência de um atendimento prioritário e sob o viés determinado pela doutrina da proteção integral (CR, Art. 227).Curvou-se o constituinte à vulnerabilidade da criança e do adolescente3 , agindo então no intuito de lhes garantir igualdade material e acesso pleno à cidadania, instituindo, inclusive, em
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1 Da Silva, José Afonso. Comentários Contextuais à Constituição. Ed. Malheiros, 6ª Edição, p.46.
2 “Todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte na elaboração do texto constitucional.” (Min. Carmen Lúcia Antunes Rocha, do STF, apud José Afonso da Silva, op. Cit., p. 46).
3 “A Constituição Federal de 1988 dedica seus artigos 227 a 230 à tutela de pessoas portadoras de vulnerabilidade, consignando-se proteção especial em razão do déficit psicofísico causado por algum tipo de fragilidade. Por isso a criança e o adolescente, o deficiente e o idoso receberam tutela diferenciada, que reforça os direitos fundamentais previstos para a pessoa humana de maneira geral. A tutela da pessoa vulnerável deve ocorrer em todos os âmbitos, como nas relações econômicas e consumeristas, mas principalmente nas de natureza existencial, para que haja ‘tutela específica (concreta) de todos os que se encontrem em situação de desigualdade, por força de contingência(...) como forma de assegurar a igualdade e a liberdade, expressões por excelência da dignidade humana.” Maria Celina Bodin de Moraes e ana Carolina BroChado Teixeira, Comentários à Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, 2013, p. 2124, Coordenação J. J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lênio Luiz Streck).
seu favor uma série de direitos fundamentais especiais4 , estruturados a partir se suas específicas necessidades.
A disposição constitucional alusiva à tutela democrática de crianças e jovens se fez, aliás, em decorrência de luta empreendida por movimentos sociais, por meio, inclusive de emendas populares, cujo acolhimento se tornou inevitável por apresentarem conteúdo em plena sintonia com as normativas internacionais e compatibilidade com o espírito democrático na nova Carta5 .
O constituinte, por sinal, superando polêmicas previsíveis e recorrentes em relação a ponto nodal da proteção à infância, optou por manter a tradição de tratamento não penal à questão da delinquência juvenil, impondo ao legislador ordinário a produção de legislação consentânea com os padrões próprios da proteção integral para o cuidado da matéria (CR, Art. 228).
Inscreveu-se no texto constitucional, portanto, uma presunção absoluta de inimputabilidade penal de crianças e jovens, o que, para setores importantes da doutrina significa a adoção de uma garantia constitucional fundamental em prol desses sujeitos especiais6 .
Com isso abriu espaço a um cuidado sociopedagógico da questão da delinquência juvenil, rejeitando em definitivo a concepção retribucionista-repressiva, que apenas poderia contribuir negativamente, facilitando o ingresso de adolescentes na senda da criminalidade7 .
A vontade do constituinte deu-se no sentido de reconhecer que a passagem dos jovens pelo sistema de justiça criminal pode operar como fator criminógeno, como realmente sucede, agindo de modo a oportunizar o surgimento de um sistema no qual
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4 Direitos fundamentais recortados nos moldes das urgências dos sujeitos especiais de direitos, sem afastar os demais direitos e garantias fundamentais constitucionais (cf. MarTa Toledo MaChado, A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos, Ed. Manole, p. 153, 2003).
5 GoMes da CosTa, Antonio Carlos. Das Necessidades aos Direitos, Ed. Malheiros, p. 157, 1994.
6 “Concordamos com Renê Ariel Dotti quando concebe a inimputabilidade como uma das garantias fundamentais da pessoa humana, embora não esteja incluída no respectivo Título I da Constituição, que regula a matéria. Trata-se de um dos direitos individuais inerentes à relação do Art. 5º, e portanto cláusula pétrea.” (José afonso da silva, op. Cit., p. 864).
7 Segundo eMílio GarCia Mendez o retribucionismo repressivo “consiste no aumento indiscriminado da repressão, por meio da proposta da redução da idade da imputabilidade penal. Essa resposta não somente demonstrou ser completamente inútil como também contribuiu para agravar o problema. O fato de que, como foi demonstrado, em um número significativo de infrações penais graves cometidas por adolescentes apareçam envolvidos adultos como instigadores tem como consequência automática um recrutamento de adolescentes para fins criminais, de idade inferior à proposta como novo limite da inimputabilidade penal (geralmente aos dezesseis anos), aumentando a dimensão quantitativa do universo dos infratores.” (Infância e Cidadania na América Latina, Ed. Hucitec, p. 139, 1998).
triunfasse o caráter pedagógico como meio de atender aos preceitos da peculiaridade da condição de crianças e jovens.
O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Ato Infracional
Cumprindo o mandado constitucional, o legislador ordinário tratou de providenciar legislação moldada pela ordem principiológica emanada do texto constitucional, forjando assim o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), que deu conta de firmar um modelo de atendimento socioeducativo para a séria questão do adolescente em conflito com a lei.
As balizas fundamentais se firmaram no sentido de se adotar postura legislativa democrática, estruturando o conceito de ato infracional8 como conduta compatível com a prática de crime ou contravenção penal, já aí fixando paradigmas de um tratamento garantista do fenômeno, à medida que a tipificação da conduta infracional restará obrigatoriamente submetida a princípios penais de tutela da pessoa do autor do fato, tais como o da tipicidade, legalidade e anterioridade da previsão legal9 .
Nesse particular, aliás, nota-se que a legislação estatutária andou rente às DiretrizeS DaS NaçõeS UNiDaS Para PreveNção Da DeliNqUêNcia JUveNil – DiretrizeS De riaD, em cujo texto se colhe que:
Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito e nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem.
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8 ECA, “Art. 103 – Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.”
9 “O fato que está na base da intervenção do Estado quando segrega o adolescente é o mesmo que leva à segregação do adulto: o crime. Mais. É em face da prática do crime que se aplica uma sanção, mesmo que essa sanção, quando se trata de inimputável em razão da idade, seja diversa da pena criminal. E, mais ainda – não podemos tergiversar sobre isso – ambas as sanções, embora distintas, comportam igualmente privação de liberdade. (...) Se assim é, necessário se faz a apropriação das grandes linhas do direito penal aplicável para o adulto, porque, no âmago, no mundo real ele é, em menor ou maior grau, um sistema de garantias; e, juridicamente, o Direito Penal pretende ser esse sistema de garantias, ligado umbilicalmente à própria concepção do Estado Democrático de Direito: um sistema que limita o poder do Estado de dar resposta ao evento crime mediante o uso da força e limita os contornos da força a ser empregada...” (MarTa Toledo MaChado, op. Cit., p. 235-236).
De outra parte, no que respeita às consequências da conduta típica o parâmetro sociopedagógico foi efetivamente eleito, como não poderia deixar de ser, prestando-se o atendimento respectivo por intermédio das medidas socioeducativas (ECA, Art. 112), que contemplam programas de acompanhamento inclusivo do autor do ato infracional, baseados em fundamentos educacionais10.
Não se trata de desresponsabilização, mas, ao contrário, de sistema que objetiva, por meio de providências de teor educativo, a reconfiguração dos valores pessoais do autor do ato infracional, sem desprezo à atribuição dos encargos reparatórios em relação aos danos decorrentes de sua conduta (ECA, Art. 112 e Lei nº 12.594/2012, Art. 1º, § 2º).
De se ver, aliás, a possibilidade de medidas que pressupõem supressão da liberdade (ECA, Arts. 120/121), malgrado em seu regime de aplicação o critério estabelecido seja o da excepcionalidade11, como se mostra indispensável num quadro guiado pelo postulado da proteção integral.
As Garantias Processuais e a Nova Justiça de Infância e Juventude
Se a disciplina do ato infracional, sob o prisma do direito material, se deu em termos avançados, ou seja, com observância irrestrita aos postulados da proteção integral, e com conformidade à normativa internacional, sobretudo a referente à coNveNção iNterNacioNal De Direito Da criaNça Da oNU, de 1989, e à relativa às regraS MíNiMaS De BeiJiNg Para a aDMiNiStração Da JUStiça De iNfâNcia e JUveNtUDe, de 1985.
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10 “A prevenção da criminalidade e a recuperação do delinquente se darão, como quer o Estatuto, com a efetivação das políticas sociais assistenciais (em caráter supletivo) e dos programas de proteção especial (destinados a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social), vale dizer, com o Estado vindo a cumprir seu papel institucional e indelegável de atuar concretamente na área da promoção social. Então, para o adolescente autor do ato infracional a proposta é que, no contexto da proteção integral, receba ele medidas socioeducativas (portanto, não punitivas), tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento, objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social.” (olyMpio soTTo Maior, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Malheiros, Coordenador Munir Cury, p. 536 ).
11 “É importante insistir que em um modelo de proteção integral a circunstância de estar crescendo não implica perder a condição de sujeito. Pelo contrário, esses sujeitos, precisamente por essas circunstâncias, contam com alguns direitos extras, além daqueles que têm todas as pessoas. Esse é o fundamento, dentre outros, de um sistema de responsabilidade penal juvenil. Em um sistema desse tipo se estabelecem, como consequência jurídica da comissão de um delito por parte de um jovem ou adolescente sanções diferentes, que vão da advertência e da repressão até os regimes de semiliberdade e internação. No caso em que seja necessário recorrer a uma reação estatal de coação, a centralidade é ocupada por estas sanções e a alternativa é a privação de liberdade. A alternativa e a excepcionalidade da privação da liberdade se estabelece assegurando que se trata de uma medida de último recurso, que deve ser aplicada pelo tempo mais breve possível e, em todos os casos, por tempo determinado.” (Mary Bellof, Os Sistemas de Responsabilidade Penal Juvenil na América Latina, em Infância, Lei e Democracia na América Latina, Org. Emilio Garcia Mendez e Mary Beloff, Ed. Edifurb, p. 115).
Fazia-se necessário superar o modelo exclusivamente inquisitorial proveniente da legislação que se tornara incompatível com os termos da Constituição da República, posto que idealizada na perspectiva da velha doutrina da situação irregular, na qual a arbitrariedade era o meio de controle de controle de crianças e jovens autores do ato infracional.
O sistema apuratório anterior, analisado em suas entranhas pelos especialistas, gerava sentimentos que iam do horror à inquietação permanente por parte dos operadores do Direito, sendo produto de uma acintosa afronta à garantia secular do devido processo, favorecendo circunstâncias de violência institucional generalizada, em desfavor não apenas de crianças e jovens que por ele transitavam, mas da sociedade como um todo, já que se alimentava perigosamente por seu intermédio a violência urbana12.
Frente a essa percepção é que a legislação estatutária inovou, estabelecendo em seus dispositivos garantias e direitos processuais do autor de ato infracional (ECA, Art. 106/109 e 110/111), subordinando a internação a pressupostos legais específicos, sobretudo quando provisória ou decorrente de situação de flagrância, além de listar os elementos indispensáveis ao devido processo, condição imprescindível à imposição de medidas socioeducativas, sobretudo as restritivas de liberdade.
De se lembrar, a propósito, que os dispositivos em referência, listam garantias específicas, mas indicam a presença de outras, implícitas, inerentes ao devido processo, mesmo por força das aludidas normativas internacionais, firmadas e ratificadas internamente, sendo parte do sistema legal de proteção à infância e juventude13.
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12 “Do ponto de vista da segurança pública, os procedimentos atuais de atendimento a crianças e adolescentes vulneráveis no Distrito Federal transformaram-se em mecanismos produtores ou reprodutores de marginalidade ou delinquência violenta, alimentando, em vez de debelar, o ciclo perverso da violência criminal. Finalmente, do ponto de vista pedagógico, a ineficácia do sistema atual é completa. Seu objetivo nominal é um, mas o resultado é o oposto, e isso porque o programa traz implícito um objetivo antipedagógico, qual seja, destruir a autoconfiança, o autoconceito, a capacidade de arrependimento e reorientação de vida de crianças e jovens vulnerabilizados socialmente, conduzindo-os ao funil sacrificial de difícil retorno e de trágico final pré-programado – a miséria física e mental, o suicídio, a destrutividade cega e os jogos de morte.” (deodaTo rivera em relatório sobre o sistema de justiça antes do ECA, apud anTonio fernando aMaral e silva, A Nova Justiça da Infância e da Juventude, em Estatuto da Criança e do Adolescente – Estudos Sócio-Jurídicos, Ed. Renovar, p.162, Ed. Renovar, Coord. Tânia da Silva Pereira).
13 “Seguindo o preceito disposto no Art. 5º, inc. LXI, de que ninguém será preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada pela autoridade judiciaria competente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio do art. 106, impede que o adolescente seja privado de sua liberdade senão em flagrante por ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente. A partir desse artigo extraímos várias garantias, como a limitação da restrição da liberdade apenas mediante flagrante ou decisão judicial fundamentada, o princípio da presunção de inocência, o direito de ser informado de seus direitos e vários outros direitos decorrentes do devido processo legal.” (Josiane rose peTry veronese e Mayra silveira, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Conceito, p. 236, 2013).
Conforme já consignado em termos doutrinários, optou-se, sobretudo, por um sistema de justiça que possa desempenhar com eficiência um papel de efetivo controle jurisdicional do Estado, já que cabe-lhe, essencialmente, a declaração e efetivação de direitos14.
Importante ressaltar também que essa escolha do legislador pode ter considerado, ainda, a dimensão pedagógica dessas garantias processuais, uma vez inolvidável a influência positiva, também sob esse prisma, facilitando a compreensão das consequências de seus atos e a reorientação pessoal ao ser tratado com respeito e dignidade15. A propósito, outro não poderia ser o procedimento do legislador ao fixar as bases do procedimento apuratório do ato infracional, à vista da previsão expressa, inclusive, do direito pessoal à dignidade (ECA, Art. 18).
Não por outra razão se pode dizer que os direitos e garantias processuais implicam no mínimo indispensável ao tratamento processual do adolescente autor do ato infracional, refletindo, em consequência, os elementos instauradores de sua dignidade processual, a cujo respeito estão vinculados todos os órgãos intervenientes no sistema de justiça.
Afinal, não há equívoco em se reconhecer que a trilogia da liberdade, dignidade e respeito pode ser vista como fator estrutural do microssistema de tutela de seus direitos e interesses16, projetando sobre ele seus efeitos em quaisquer situações.
Ministério Público e Acusação Socioeducativa
O Ministério Público foi reconcebido pelo constituinte, alcançando uma evolução que pode ser medida pela gravidade de sua missão constitucional, ou seja, a defesa da
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14 silva, anTonio fernando aMaral, A Nova Justiça da Infância e da Juventude, em Estatuto da Criança e do Adolescente – Estudos Sócio-Jurídicos, Ed. Renovar, p.162, Ed. Renovar, Coord. Tânia da Silva Pereira.
15 “As garantias processuais têm uma inegável natureza pedagógica: estas se explicitam sob a forma de um conjunto de práticas e vivências às quais o jovem é submetido e que, no entanto, em seu conjunto, lhe possibilitam inteirar-se da extensão e da gravidade de seus atos. Estas práticas e vivências devem expressar – antes de qualquer coisa – o rigoroso cumprimento dos dispositivos legais em termos de prazos, rituais e etapas. A lei deve nitidamente estar acima de todos os envolvidos no processo, inclusive do magistrado. Se isto estiver claro, o adolescente terá a sensação de que não está submetido a uma engrenagem opaca e arbitrária, mas à severidade de uma justiça da sociedade frente a um delito.” (anTonio Carlos GoMes da CosTa, Pedagogia e Justiça, p.87, em Infância, Lei e Democracia na América Latina, Ed. Edifurb, Coord. Emílio Garcia Mendez e Mary Beloff)
16 “Na hierarquia dos direitos que regulamenta, o Estatuto situa o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade imediatamente após o direito à vida e à saúde, e antes dos direitos à convivência familiar e comunitária, à educação, cultura, esportes, lazer, à profissionalização e proteção no trabalho. Essa ordem nada tem de acidental. Ela visa a colocar os dois primeiros direitos fundamentais como direitos-fins, para os quais os demais são direitos-meio. De fato, a trilogia liberdade-respeito-dignidade é o cerne da doutrina da proteção integral, espírito e meta do Estatuto, e nesses três elementos cabe à dignidade a primazia, por ser o coroamento da construção ética estatutária” (deodaTo rivera, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Malheiros, p. 106, Coord. Munir Cury)
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais ou coletivos indisponíveis (CR, Art. 127).
Nesse caminho, é correto afirmar que o texto da Carta lhe ofereceu dignidade própria de alta magistratura17, incumbindo-lhe sobretudo a implementação e fiscalização do respeito aos direitos fundamentais, base do Estado Democrático de Direito18.
O status constitucional da instituição faz dela, em uma boa compreensão doutrinária, um órgão constitucional de soberania19, sendo correto pensar que seu compromisso com a tutela da ordem jurídica o torna compromissado, sobretudo, ao respeito e concretização dos direitos humanos no exercício de suas atribuições, conformando-se ao papel de zelador da dignidade humana nos seus espaços de atuação, especialmente no âmbito do processo20.
Nesta ordem de ideias, ao atuar como encarregado da imputação da prática de conduta desviante a quem quer que seja, deve agir sob o signo da imparcialidade e equidistância, para garantir que a pretensão por ele exercida nos autos em nome da sociedade reflita atividade realizada sob o manto dos princípios constitucionais, e sem abusos.
Aliás, na condição de autor e depositário exclusivo do encargo de levar a juízo pretensão de interesse social, como ocorre na ação penal assim como no âmbito da ação socioeducativa pública, compete-lhe agir pleno de respeito às diretrizes condutoras
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17 saMpaio, José Adércio Leite. Comentários à Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, 2013, p. 1.520, Coordenação J. J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lênio Luiz Streck.
18 “O Estado Democrático de Direito. Instituído pelo Art. 1º da Constituição, como se tem entendido, é fruto de uma conexão interna entre o princípio do Estado de Direito e o Princípio Democrático. Forma-se na medida como a incorporação como princípios jurídicos de valores de justiça, e se efetiva diante da realização material dos direitos fundamentais, não na perspectiva autoritária e tecnocrática do Estado Social, mas fundado e orientado na soberania popular. (...) é inegável, portanto, que o perfil institucional dado ao Ministério Público é de nítida garantia institucional do Estado Democrático de Direito.” (Júlio Cesar finGer, Ministério Público Pós-CR/88: Podemos Comemorar?, in Ministério Público : Reflexões Sobre Princípios e Funções Institucionais, Ed. Atlas, Org. Carlos Vinícius Alves Ribeiro.)
19 J.J. CanoTilho, apud Carlos viníCius alves riBeiro, Ministério Público: Funções Extrajudiciais, Ed. Fórum, 2015, p. 58.
20 Por isso mesmo, anota huGo niGro Mazzilli: “Não atua como acusador cego e implacável, mas é o Promotor de Justiça, antes mesmo que o órgão do Poder Judiciário, a primeira e real garantia de proteção das liberdades do cidadão, por ser ele quem assegura o pressuposto de uma imputação feita por órgão independente, que tem plena liberdade de convicção e de atuação. É o Promotor que detém nas mãos o poder e acusar – expressão do direito de punir, do qual é titular o Estado soberano. Nessa relevante função, pode e deve o Promotor, conforme o caso, inclinar-se pelo arquivamento de uma investigação criminal ou por um pedido de absolvição, caso se convença da inocência do acusado.” (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Malheiros, p. 912, Coord. Munir Cury).
da atividade pública (CF, Art.37), embebido, pois, de impessoalidade, publicidade e respeito a plena legalidade21.
Nessa medida, e como no exercício de suas funções, age visando indispensavelmente a supremacia da ordem constitucional22, há de se resignar aos postulados do devido processo e sua ética, buscando a aplicação da lei e das sanções nela previstas, sem afronta, todavia, à dignidade do acusado, o que implica em não considerar direitos que lhe toquem ou exceder-se na interpretação da lei apenas em nome de uma tese.
Em particular, na condução da acusação socioeducativa, lhe impõe o equilíbrio ético de pautar sua conduta de tal modo exercer efetiva guarda do direito de liberdade do autor do ato infracional, para postular por sua internação apenas quando possível e necessária, apresentando a representação exclusivamente na versão verossímil dos fatos apurados, observando, enfim, o fato posto não apenas no viés limitado do fato típico comum, mas com o cuidado de avaliar o entorno humano do episódio e as circunstâncias que, ao incidirem sobre a conduta de seu responsável, contribuíram para sua concretização.
Indispensável ainda, a cautela de firmar posição sobre a medida socioeducativa adequada, com olhos postos a excepcionalidade das restritivas de liberdade, sem esquecimento de que cabível também, quando o caso, medidas protetivas, aptas a lhe ensejar mais rápida possibilidade de integração social.
Enfim, nas mãos do MP se encontra o desafio ético de atuar para garantir o direito fundamental à segurança pública, mas com a responsabilidade de igual teor quanto a fazer da ação socioeducativa um caminho pedagógico de reaprendizagem e reorientação de valores humanos para o autor do ato infracional.
Clilton Guimarães dos Santos é procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo.
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21 “Agindo como parte, os membros do Ministério Público têm os deveres gerais que informam a administração pública. Sobre os seus atos prevalecem os princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade, da moralidade, da eficiência, da lealdade, da objetividade, da razoabilidade, da independência e, principalmente da imparcialidade. Todos os membros do Ministério Público encarnam em seus movimentos e atos todos esses princípios. São magistrados pro populo.” (Claudio Barros, Abusos e Omissões do Ministério Público e de Seus Membros, em Ministério Público: Reflexões Sobre Princípios e Funções Institucionais, Ed. Atlas, Org. Carlos Vinícius Alves Ribeiro).
22 idem, p.222.
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